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Vila Tronco: ‘As casas foram sendo demolidas deixando um Iraque no lugar’

Marco Weissheimer

Na zona sul de Porto Alegre, há um território hoje que lembra um cenário de guerra. O projeto inacabado de duplicação da avenida Tronco, uma das chamadas “obras da Copa”, deixou um rastro de casas demolidas, ruas esburacadas com crateras de lixo e esgoto a céu aberto. Milhares de pessoas foram removidas de suas casas com a promessa de que ganhariam novas moradias e uma nova vida. As promessas não se realizaram. A obra não foi concluída e muitas famílias que tiveram suas casas destruídas estão ameaçadas de despejo hoje ou já foram despejadas. Além das perdas materiais, esse “legado” inclui a desestruturação de comunidades que viviam juntas há décadas.

Os problemas envolvendo remoção de moradores nas regiões do Cristal, Cruzeiro e Tronco remontam ao início dos anos 2000, com o Programa Integrado Socioambiental (PISA). A partir da troca de administração do município, em 2005, com o início do governo José Fogaça, houve uma alteração completa na dinâmica do que era o projeto de manutenção ou de reassentamento das famílias que vivem às margens do arroio Cavalhada. O projeto original do PISA previa o saneamento dos arroios Dilúvio, Cavalhada e do Salso e a ampliação da capacidade de tratamento dos esgotos de Porto Alegre de 27% para 80% até 2015. O reassentamento, na própria região, das cerca de 1.500 famílias que viviam às margens do arroio Cavalhada estava previsto no projeto financiado pelo Banco Mundial.

O desmanche do vínculo territorial

Até 2004, assinala Leandro Anton, geógrafo, fotógrafo e coordenador do Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo, todo projeto que atingisse moradias de áreas regulares ou irregulares previa que essas famílias deveriam ser reassentadas em um raio de um quilômetro. “Isso se devia ao entendimento de que o vínculo territorial era importante para essas famílias que já viviam uma situação de extrema vulnerabilidade. A partir de 2005, houve uma mudança de orientação na política habitacional em toda a cidade”, assinala Anton.

Leandro Anton: “O Cristal foi um laboratório do que iria ocorrer mais tarde na Tronco”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

O Cristal foi, de certa forma, o laboratório dessa mudança, aponta o coordenador do Quilombo do Sopapo. Ao invés do reassentamento em áreas próximas adquiridas pelo município, foram introduzidas duas modalidades de despejo velado: o bônus moradia e o aluguel social. O primeiro era um crédito de aproximadamente R$ 40 mil, valor insuficiente para adquirir um terreno e casa dentro dessa região que está a 15 minutos do centro da cidade. O segundo era um recurso assistencial mensal destinado a atender, em caráter de urgência, famílias que se encontram sem moradia. Um dos primeiros impactos dessas medidas, diz ainda Leandro Anton, foi a fragilização do movimento comunitário que, até então tinha uma pauta mais unificada. A partir dessa mudança, começou-se a tratar caso a caso, numa relação direta da Prefeitura com cada família.

O Executivo começou a implementar aí, acrescenta o geógrafo, uma estratégia que se repetiria mais tarde com os moradores da Vila Tronco. “O aluguel social serviu, entre outras coisas, para desencalhar imóveis que não estavam sendo locados por imobiliárias. Há famílias que estão no aluguel social há quatro ou cinco anos, com um valor médio de R$ 500,00 por mês. Esse dinheiro público, que poderia estar sendo utilizado para construir unidades habitacionais, acaba indo para o setor imobiliário privado”.

“Virou um projeto de destruição de casa de pobre”

Lenemar Bastos conta que o processo de remoção das famílias que moravam ao lado do arroio Cavalhada começou em 2007. “O projeto inicial previa que as famílias seriam reassentadas na região, com a opção do bônus moradia que, na época, era de aproximadamente R$ 45 mil. No entanto, o governo não construiu as moradias que disse que iria construir e o projeto acabou virando um projeto de destruição de casa de pobre”.

Lenemar Bastos, ao lado de onde ficava sua casa, às margens do Arroio Cavalhada. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Mais de 800 casas foram destruídas ao todo e apenas 38 foram construídas. “Eu morava exatamente neste local em que estamos aqui. Havia 260 famílias morando nesta área, somando cerca de mil pessoas. Todas elas foram retiradas da região. A maioria optou pelo bônus moradia, mas muitas ainda estão com o aluguel social, ameaçadas de despejo hoje pelo atraso no pagamento do mesmo. Há ainda cerca de 800 famílias morando ao longo do arroio Cavalhada que tem seu futuro indefinido, sem saber o que vai acontecer, diz Bastos”.

Além do PISA, o segundo acontecimento que acabou produzindo um impacto muito forte na região, em especial na Vila Tronco, foi o anúncio de que o Brasil seria sede da Copa do Mundo e Porto Alegre uma das cidades-sede. “Mais uma vez aí tivemos um exemplo de programa de obras feito sem planejamento. As cidades que viriam a ser sedes da Copa definiram um pacote de obras que trariam uma série de melhorias para a população. Essas obras, dizia-se na época, eram uma condição para que o evento chegasse à cidade, o que não era verdade. As condições fundamentais para o evento eram os aeroportos, a rede hoteleira, o estádio e seu entorno. Duplicações de avenidas que não chegavam aos estádios não estavam entre essas obras necessárias”, observa Leandro Anton.

Uma cena que se repete na Tronco: onde havia casas, escombros marcam obra que não tem data para acabar. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Em 2010, o projeto de duplicação da avenida Tronco foi apresentado em um fórum do Orçamento Participativo. O coordenador do Quilombo dos Sopapos lembra as promessas feitas na época e o que, de fato, aconteceu:

“Era um projeto que já veio pronto. Não houve nenhum processo de consulta às cerca de 1.500 famílias que seriam atingidas pela obra. A Prefeitura disse, na época, que seriam construídas unidades habitacionais para abrigar as famílias que seriam removidas, mas que as obras deveriam começar antes disso. A opção para as famílias era, mais uma vez, aluguel social ou bônus moradia. O movimento comunitário construiu uma pauta própria centrada na ideia do ‘chave por chave’: eu saio da minha casa desde que tenha em mãos a chave da minha casa nova. Houve uma desapropriação de dezessete terrenos na região, onde seriam construídas novas unidades habitacionais pelo programa Minha Casa, Minha Vida para atender todos os atingidos. Esses terrenos estão desapropriados desde 2011 sem que uma única unidade fosse construída, assim como ocorreu no caso do Programa Integrado Socioambiental”.

Crianças brincam em meio aos escombros da obra inacabada de duplicação da Tronco. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Destruição de casas deixou um cenário de guerra

Também no caso da Tronco, a intervenção da Prefeitura provocou a fragilização do movimento comunitário por meio da negociação caso a caso com as famílias atingidas. Montou-se um escritório próximo ao Postão da Cruzeiro, onde as famílias poderiam optar entre o bônus moradia e o aluguel social. “Mais uma vez, recursos públicos foram destinados para o setor imobiliário privado, com áreas desapropriadas para a construção de novas moradias sem um único tijolo erguido. As casas foram sendo destruídas deixando, para quem permaneceu morando na região, um cenário de guerra. Temos casas demolidas ao lado de casas onde moram famílias, gerando um ambiente extremamente hostil”, relata Leandro que resume assim o passivo deixado pelo projeto de duplicação da avenida Tronco:

“Nenhuma família foi reassentada na região, mesmo com a existência de áreas desapropriadas com o uso de recursos públicos. O pagamento de aluguel social, que tem sofrido inúmeros atrasos, segue drenando mensalmente recursos do setor público para o setor privado. Muitas famílias que optaram pelo bônus moradia e compraram casas em praias do Litoral Norte já venderam seus imóveis, por conta da falta de trabalho fora da temporada, retornando para as periferias urbanas. E, quem permaneceu na área, sofre com o problema das obras inacabadas, quase seis anos depois do início das mesmas”.

Lucia Fernandes mostra a cratera de lixo e esgoto que se abriu na frente de sua casa. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Uma cratera de esgoto e lixo

A pauta de reclamações dos moradores é ampla: acúmulo de destroços de demolição, insegurança, esgoto a céu aberto, prejuízos para a mobilidade e para o comércio, entre outras. Lucia Fernandes da Silva mora na Tronco há mais de 20 anos e convive hoje com uma cratera de esgoto em frente à sua casa. “Isso aqui é uma discriminação. Eles acham que, porque a gente mora na vila e é humilde, tem que viver no meio do lixo, da imundície e do fedor. A cratera está corroendo a rua por baixo. Se um carro passar na beira pode cair aí dentro, pra não falar das crianças que também podem cair. Se isso acontecer quem vai dar nossos filhos de volta? Essa situação vem desde antes da Copa, que nem lembro mais quando foi. Naquele tempo era pra rua estar pronta e está aí desse jeito. Antes da eleição tinha uns 300 homens aí trabalhando. Passou a eleição, eles sumiram. Nunca mais vieram”, reclama Dona Lucia.

Irani dos Santos Pinto já teve sua casa destruída e improvisou um pequeno comércio em uma rua estreita que não tem muito movimento. Ele espera por dias melhores. “A gente aconselhou as pessoas a não irem para o aluguel social para não acontecer o que hoje está acontecendo. Um pouco pagam, outro pouco não pagam. Eu fiz o negócio com eles a dinheiro e tenho direito a uma loja na avenida quando ela estiver pronta. Por enquanto, improvisei um negócio aqui, fazendo chave e vendendo alguma mercadoria para não ficar parado e ir sobrevivendo. Só que esse lugar é muito pra dentro, é um beco e muita gente tem medo de entrar aqui. Perco muito serviço porque as pessoas têm medo”, lamenta seu Irani.

Irani dos Santos diante da sua ex-casa: “fiz o negócio com eles a dinheiro e tenho direito a uma loja na avenida quando estiver pronta”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“Estamos muito fragilizados, sem perspectiva de melhoras”

Ex-presidente da União de Vilas da Grande Cruzeiro, José Araújo conta que as remoções e destruições de casas fragmentaram e desorganizaram a comunidade. A entidade que presidiu reunia semanalmente cerca de 30 associações da região que debatiam os problemas comuns vividos pela população e buscavam soluções. Esse quadro começou a mudar, relata, a partir de 2010. “Vieram com força para cima da comunidade fazendo com que a gente ficasse sem pai nem mãe. Fizemos muitas reuniões e assembleias, brigando com a Prefeitura. Quando começou o forte da Copa do Mundo, em 2012, o prefeito queria tirar 1600 famílias que estavam em cima do leito, muitas delas em áreas públicas. Isso dava, no mínimo, umas 6 mil pessoas. Eles diziam que, até 2014, era preciso ter tudo limpo para que eles pudessem terminar essa grande avenida Tronco”.

José Araújo relata ainda que, na época, disse ao prefeito José Fortunati que ele não conseguiria terminar aquela obra em 2014, nem em 2015, o que acabou se concretizando. “Não tinha como tirar todas essas pessoas, passando máquina por cima. Eles fizeram muitas coisas mal feitas, prejudicando a população. O pior é que depois de tudo isso aqueles que aceitaram sair de suas casas, ficaram sem pai nem mãe. Receberam um aluguel social de R$ 500, com a promessa de que, em um ano e meio, estariam morando em suas novas casas. Já faz cinco anos que estão nessa situação”.

Ex-presidente da União de Vilas da Grande Cruzeiro, José Araújo mostra as marcas da destruição chegando perto de sua casa. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Além dos problemas materiais, ele lamenta a fragmentação da vida comunitária que ocorreu com esse processo de remoção das famílias para longe de locais onde moravam há décadas em muitos casos. “Isso aí é o que eles queriam, fragmentar mesmo. As casas foram sendo demolidas, deixando um Iraque no lugar. É uma vergonha ver a situação dessa avenida, toda esburacada, com esgoto a céu aberto. Estamos muito fragilizados, sem nenhuma perspectiva de melhora”, conclui.

Duplicação não tem previsão de término

A Prefeitura de Porto Alegre não tem uma previsão para a conclusão da duplicação da avenida Tronco, assim como ocorre com outras das chamadas “obras da Copa”. No dia 7 de agosto, o Executivo encaminhou à Caixa Econômica Federal uma proposta de revisão do contrato de financiamento dessas obras. A Prefeitura quer redirecionar R$ 115,07 milhões do saldo de R$ 249,43 milhões disponíveis para os BRTs (Bus Rapid Transit) para garantir a conclusão de algumas das obras que foram paralisadas. Esse redirecionamento, junto com um financiamento de R$ 120 milhões e outros R$ 248,9 milhões assegurados no contrato com a Caixa, permitiria a retomada dessas obras, diz o município.

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Foto: Guilherme Santos/Sul21
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15 respostas em “Vila Tronco: ‘As casas foram sendo demolidas deixando um Iraque no lugar’”

Parabéns, Marcos. O poder público é capaz de ampliar a miséria da população que mais necessita de amparo. A matéria atordoa como uma pancada na cabeça.
Grande iniciativa do Sul 21 que está fazendo jornalismo de fato.

O PT fez inúmeras obras nessa região e nunca deixou a população desse jeito, pelo contrário! Agora tu parece não entender nada mesmo, ou está se fazendo de bobo, com este comentário de quem não conseguiu entender o que está escrito. Sugiro que releia tudo, com atenção! Antes tire o teu óculos do preconceito!

Realmente eu não sei onde vamos parar, com o nível de ignorância e estupidez demonstrado em comentários como esse. Eu cresci nessa região, e o que testemunhei foi o saneamento e asfaltamento de diversas ruas de chão batido (inclusive a que eu morava) durante os anos do PT na prefeitura, o que melhorou muito a qualidade de vida na região .
Já faz mais de uma década que o PT saiu da prefeitura. Então, a menos que seja pura ironia, o comentário é um exemplo grotesco de desinformação.

Uma realidade Proxima a nos portoalegrenses, porém dissemidas nas capitais da Copa, 80% das obras da copa no brasil está inacabadas, pioraram ainda mais o transito, quando o projeto era melhorar, mas é assim dinheiro publico deliberado por medidas emergencias, tais como na copa, ocorre essas mazelas. mas os estádios com dinheiro publico está ai as moscas se deteriorando em grande parte, porém prontos.

Compraram casas na praia com o dinheiro que ganharam por ter invadido uma área e depois jogaram fora. . Morei na rua Comandai, bem próximo a essa área das imagens. Apresentem todas as visões da historia. Aprendam a fazer um jornalismo sério. A maioria do pessoal pegou o dinheiro e foi invadir outras áreas.

Nos anos 70 morei na Av. Tronco, parada 27, em frente ao antigo campinho de peladas, ainda de chão batido; morei tb na Divisa com a Comandaí, em frente a antiga ESMEF Loureiro da Silva; a região sempre teve o perfil de operariado urbano; Um excelente relato de uma triste história para a população do Cristal e da Grande Cruzeiro, sem final feliz!

Desde 2013 acompanho o caso dos moradores da Troco. Em 2015, meu trabalho de conclusão de curso foi justamente uma reportagem investigativa sobre a violação de direitos à moradia durante as obras da Copa do Mundo de 2014, na Avenida Tronco. Segue o link de meu projeto. http://w3.ufsm.br/nosescombrosdavida/
Parabéns pela reportagem, a discussão sob direito à cidade e à moradia não pode ser secundarizada.

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